Tudo que você precisa saber sobre o Trabalho Infantil

trabalho infantil

O que é Trabalho Infantil?

O Plano Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil e Proteção ao Adolescente Trabalhador define como: 

As atividades econômicas e/ou atividades de sobrevivência, com ou sem finalidade de lucro, remuneradas ou não, realizadas por crianças ou adolescentes em idade inferior a 16 (dezesseis) anos, ressalvada a condição de aprendiz a partir dos 14 (quatorze) anos, independentemente da sua condição ocupacional. Para efeitos de proteção ao adolescente trabalhador será considerado todo trabalho desempenhado por pessoa com idade entre 16 e 18 anos e, na condição de aprendiz, de 14 a 18 anos, conforme definido pela Emenda Constitucional nº 20, de 15 de dezembro de 1998. (BRASIL, 2011, p. 6).

O Conselho Nacional do Ministério Público, em Manual de atuação do Ministério Público na prevenção e erradicação do trabalho infantil elaborado por Medeiros Neto e Marques (2013), apresenta a seguinte definição: 

O termo Trabalho Infantil, em sua acepção atual, compreende a realização, por crianças e adolescentes com idade inferior a 16 anos, de atividades que visem à obtenção de ganho para prover o sustento próprio e/ou da família, como também de quaisquer serviços que não tenham remuneração.  (BRASIL, 2013, p. 7).

A obra da OIT intitulada de Combatendo o Trabalho Infantil: guia para educadores assim conceitua o trabalho infantil: “Podemos dizer, pois, que o Trabalho Infantil é aquele realizado por crianças e adolescentes que estão abaixo da idade mínima para a entrada no mercado de trabalho, segundo a legislação em vigor no país” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2001).

O Manual de atuação do Ministério Público na prevenção e erradicação do trabalho infantil (BRASIL, 2013), propõe algumas subcategorias que funcionam como espécies de modalidades da violação de direitos:

a) trabalho infantil no âmbito familiar;

b) trabalho infantil doméstico;

c) trabalho infantil em benefício de terceiro;

d) trabalho infantil “por conta própria”

e) trabalho infantil em atividades ilícitas;

f) trabalho infantil artístico;

g) trabalho infantil desportivo;

h) trabalho infantil religioso;

i) trabalho infantil em ambiente virtual.  

Mitos sobre o Trabalho Infantil

A cultura, explica-nos a clássica antropóloga Benedict (1988), é a lente através da qual enxergamos, ou melhor, compreendemos o mundo. Com efeito, embora nossos órgãos de sentido captem imagens, odores, sabores, sons e reconheçam superfícies, esses, para serem interpretados, carecem da informação cultural, ou seja, necessitam basicamente da linguagem. 

É por meio da linguagem que aprendemos o nome das coisas, das cores, que reconhecemos os ruídos, que distinguimos os odores e os sabores, que aprendemos os valores morais da sociedade, que absorvemos suas concepções religiosas, suas ideologias, suas crenças, enfim, a linguagem nos introduz a um conjunto articulado de conceitos, concatenados e que fazem sentido entre si e é por meio deles que nós compreendemos, ou enxergamos, como disse Benedict, o mundo e nele agimos.

Muitos desses conceitos, formados há tempos imemoriais e repassados de geração em geração, carregam consigo conteúdos nem sempre condizentes com os modernos conceitos científicos e mesmo com a legislação em vigor no país, entretanto, por serem valores culturais sobrevivem e, pior, continuam a ser ensinados, como é o caso do trabalho infantil. Assim, sendo a valorização do trabalho infantil no Brasil um dado cultural, o seu enfrentamento se torna ainda mais difícil, uma vez que, a sua “aceitação geral” abre o espaço para que o fenômeno seja naturalizado e, com isso, fique invisível, ao ponto de passarmos por ele nas ruas e não o reconhecermos, por mais numerosos e escandalosos que sejam.

Quem não ouviu algum ditado popular que valoriza o trabalho e condena o ócio?  Soam como familiares as frases: “o trabalho dignifica e enobrece o homem”; “Mente vazia oficina do diabo”; “Trabalhar não faz mal”. “É melhor trabalhar do que ficar na rua à toa”. Ou, pior ainda, é melhor trabalhar do que vender drogas”, como se a comercialização de drogas por crianças e adolescentes não fosse uma das piores formas de trabalho infantil. 

Ora, se endossamos o trabalho infantil como sendo um comportamento normal, é bem provável que estejamos “trombando” com ele, por toda a parte, e não estejamos enxergando-o, pelo menos não enxergando como uma violação dos direitos da criança, ou seja, essa naturalização do trabalho infantil provoca a invisibilidade do fenômeno, o que dificulta em muito o enfrentamento do problema, uma vez que o próprio agente do sistema de proteção está imerso nessa complexa teia de valores.

Estes são alguns mitos que dão suporte ao Trabalho Infantil.

1) MITO: O TRABALHO DA CRIANÇA/ADOLESCENTE AJUDA A FAMÍLIA

O trabalho precoce é uma forma de exploração da criança e do adolescente. Se a família está sem condições de suprir suas necessidades básicas, deve ser encaminhada aos locais de acesso às políticas públicas de proteção e assistência social do município, onde receberá orientação e apoio.

2) MITO: É MELHOR TRABALHAR DO QUE FICAR NAS RUAS

Lugar de criança é na escola, na comunidade e convivendo com sua família. O trabalho precoce expõe a criança a várias situações de risco e vulnerabilidade.

Locais como o CRAS, o CREAS e outros centros de convivência e assistência social trabalham justamente para garantir proteção e inclusão das famílias e para oferecer alternativas de desenvolvimento para crianças e adolescentes.

3) MITO: CRIANÇA/ ADOLESCENTE QUE TRABALHA FICA MAIS ESPERTO (A)

O Trabalho Infantil tira da criança e do adolescente o direito de viver essa fase fundamental de suas vidas. O melhor é ter oportunidade de aprendizagem na escola e no trabalho protegido na idade permitida, após os 16 anos.

4) MITO: QUEM COMEÇA A TRABALHAR CEDO GARANTE O FUTURO

O Trabalho Infantil causa abandono escolar e prejudica o futuro da criança. Menos tempo de estudos significa menos oportunidades futuras no mercado de trabalho.

O Trabalho Infantil sempre foi proibido? 

O trabalho infantil é parte indissociável da evolução histórica daquilo que conhecemos como civilização humana. A utilização da mão de obra infantil, segundo revelado pelo Código de Hamurabi, apresenta-se como tal há mais de quatro mil anos atrás, haja vista a existência de medidas protetivas em defesa de crianças e adolescentes que, naquele momento histórico, desempenhavam a função de “aprendizes”. Já no Egito antigo não havia proteções jurídicas fundamentadas, bastava que o sujeito tivesse certa condição física para desenvolver determinadas funções. Segundo Vianna (2000), assim que alcançavam algum desenvolvimento físico, as crianças eram inseridas no trabalho, sob a condição de escravizados do Faraó:

No Egito, sob as dinastias XII e XX, sendo todos os cidadãos obrigados a trabalhar, sem distinção de nascimento ou fortuna, os menores estavam submetidos ao regime geral e, como as demais pessoas, trabalhavam desde que tivessem relativo desenvolvimento físico (VIANNA, 2000, p. 989). 

Nas sociedades greco-romanas, a escravidão era lícita, e os filhos das pessoas vítimas da escravidão eram tratados como mercadorias, servindo aos seus amos sem nenhuma remuneração, conforme lembra Vianna (2000, p. 989), “Na Grécia e em Roma, os filhos dos escravos pertenciam aos senhores destes e eram obrigados a trabalhar, quer diretamente para seus proprietários, quer a soldo de terceiros, em benefício de seus donos.

Indo adiante, na Idade Média a criança se submetia a uma espécie de aprendizado, no qual, muitas vezes, um mestre era remunerado para ensinar determinado oficio. O autor relata ainda que, enquanto perdurou a idade média, a situação das crianças trabalhadoras apresentava-se sob uma forma ainda mais cruel.  Neste período, as crianças desempenhavam funções de auxílio aos pais no trato com a terra dos senhores feudais, suportando longas e extenuantes jornadas de trabalho. Uma espécie de escravidão velada e não declarada:

As crianças compartilhavam com os pais no trabalho no campo, no mercado e ao redor da casa, logo que tinham idade suficiente para realizar alguma tarefa. […] o uso de crianças no trabalho não era visto como problema social até a introdução do sistema fabril. (VIANNA, 2000, p. 989). 

O Trabalho Infantil é um problema social?

O trabalho infantil adquire contornos de problema social com o advento da Revolução Industrial, tornando-se um fenômeno de caráter ainda mais violento e exploratório. Nesse contexto, as mulheres também foram precariamente inseridas no mundo do trabalho, como mão de obra barata. Pode-se dizer que a mentalidade fabril consistia na busca de uma forma de organização eficiente, impulsionada unilateralmente pela busca do lucro. Nesse aspecto, segue-se uma lógica corporativista que enseja como método a racionalização e a divisão do trabalho, expandindo os espaços apropriados à atuação de crianças e mulheres. 

Segundo Vigário (2004, p. 45), a Revolução Industrial impactou profundamente na configuração da família, alterando substancialmente sua dinâmica e modificando os papéis desempenhados pelos seus respectivos elementos. Nos idos do século XVII, a família era tida como unidade essencial da organização social. Nessa perspectiva, não havia diferenciação entre as crianças e os adultos, uma vez que eram igualmente considerados enquanto partes componentes de um todo: a família. 

A partir desse período, as crianças e adolescentes trabalhadores adquiriram a condição de operários explorados pelo modo de produção capitalista, tornando-se vítimas da produção industrial. Segundo Grunspun (2000): 

A produção industrial abriu perspectivas do ganho infantil com o trabalho. Deixou de ser uma ajuda para a família nos serviços, para se tornar uma jornada de ajuda no sustento da família. A terceirização do trabalho fabril com acabamentos feitos nas casas, com pagamento por peça trabalhada, complicou mais a vida das crianças trabalhando nas casas. (GRUNSPUN, 2000, p. 14). 

E no Brasil?

No Brasil, o processo de exploração do trabalho infantil está diretamente ligado a questões legais surgidas com a instauração da República, contudo há relatos de sua incidência nos períodos colonial e imperial. De acordo com o ensinamento de Minharro (2003, p. 37), quando a Coroa Portuguesa se preparava para realizar suas expedições, buscava crianças em orfanatos e realizava negócios com as famílias que possuíam dívidas e não tinham condições de sustentar seus filhos que, por sua vez, eram postos nas embarcações. As crianças eram submetidas a trabalhos de pajens e “gourmets” e ficavam sujeitos a qualquer tipo de trabalho escravo; as crianças judias eram sequestradas à força, além de serem submetidas a diversos trabalhos, inclusive sendo vítimas de exploração sexual. 

Após esta fase, em meados do século XVI, inicia-se o processo de escravidão. Os africanos eram trazidos das colônias portuguesas e desembarcavam no Nordeste do Brasil. Nessa época, não se discutia a questão do trabalho infantil, pois o filho do escravo era tratado como “coisa”. Em suma, não recebia tratamento jurídico como um ser humano, bastava que as crianças tivessem desenvolvimento físico para serem duramente arrancados dos pais e vendidas como mercadorias aos senhores de engenho e fazendeiros:

[…] as crianças sempre foram exploradas, mas como a escravatura cobria o trabalho com adultos e crianças, as crianças órfãs e pobres eram recrutadas para o trabalho nas fazendas e das casas grandes dos senhores, onde eram exploradas e abusadas, mais do que os filhos dos escravos que valiam dinheiro e essas não valiam. Antes da abolição da escravatura nenhuma criança recebia algum ganho pelo trabalho que executava. (GRUNSPUN, 2000, p. 51-52).

Depois do longo período de sofrimento e exploração da mão de obra escravizada, surge a Lei Áurea. Conforme Delgado (2004, p. 106), a Lei Áurea não tinha a finalidade de proteção trabalhista, muito embora tenha sido o começo de uma referência histórica no Brasil, no que se refere à proteção individual. Essa legislação adquiriu fundamental relevância ao encerrar a legalidade da escravidão. 

Nas primeiras décadas do século XX, a nascente indústria nacional desempenha papel de maior destaque na economia brasileira. Nesse contexto, torna-se recorrente e marcante a utilização do trabalho infantil sob a mesma ótica dos períodos iniciais da industrialização, na Inglaterra do século XVIII. Assim, nos relata Veronese (1999): 

No Brasil, desde o início das primeiras experiências orientadas para a industrialização, as crianças oriundas de famílias operárias ingressavam nas fabricas sempre com pouca idade. Essa era a forma de garantir a aprendizagem de um oficio e também de contribuir para a manutenção das condições de subsistência das famílias. (VERONESE, 1999, p. 34).

A regulamentação do trabalho infantil no Brasil ocorreu somente em 1927 com a publicação do Código de Menores, estabelecido pelo Decreto nº 17.943 (BRASIL, 1927).  No entanto, sob o argumento de que tal legislação interferiria na prerrogativa da família em decidir aquilo que seria melhor para os filhos, a aplicação de tal código foi logo suspensa.

A Constituição de 1934 (BRASIL, 1934) determinou a proibição do trabalho infantil para menores de 14 anos, salvo em caso de permissão judicial. Já em 1967, verifica-se um retrocesso, pois a nova Constituição (BRASIL, [1971]) disciplina a idade mínima para o trabalho em 12 anos de idade. Na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988), retornou-se inicialmente aos 14 anos, no entanto a partir da Emenda Constitucional n° 20 de 1998 (BRASIL, [2003]), a idade mínima para o exercício da atividade laboral ficou estipulada em 16 anos, salvo na condição de aprendiz, 14 anos.

Assim, pode-se dizer que, no Brasil, qualquer trabalho desempenhado por crianças consiste, a priori, em atividade ilegal. Embora tenha ocorrido certa evolução, principalmente no que se refere à criação de Estatutos de proteção à criança e ao adolescente, percebe-se que as explorações continuam ocorrendo à margem dessa mesma legislação que, em tese, deveria proteger e coibir tais práticas.

A CRFB/1988 consistiu na base jurídica para a elaboração e aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente que, dentre outros, define quais são os deveres da família, da sociedade e do Estado: 

Assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” (artigo 227). Define também a idade mínima de acesso ao trabalho é de 16 anos, sendo o trabalho dos 14 aos 16 anos permitidos somente em regime de aprendizagem. Abaixo de 18 anos, é proibido o trabalho perigoso, insalubre, penoso, noturno ou prejudicial ao desenvolvimento físico, psíquico, moral e social (artigo 7º, inciso XXXIII, alterado pela Emenda Constitucional nº 20). (BRASIL, [2019]).

Nesse sentido, o Estatuto se apresenta como uma grande inovação na legislação brasileira, que cumpre importante papel na conformação de uma rede de proteção à criança e ao adolescente. Com sua aprovação, cria-se um marco no desenvolvimento de mecanismos para a defesa dos direitos da criança e do adolescente no Brasil. Em sua base legal, o Estatuto prevê a implantação de um Sistema que garanta a eficácia destes Direitos, detalhando a quem cabe garanti-los. Determina a criação de Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e os Conselhos de Direitos Estaduais e Municipais, que organizam a participação da sociedade para formular e programar políticas sociais e para definir e monitorar a execução de programas. Cria também os Conselhos Tutelares, encarregados de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (artigos 88, 131 e 132); 

Existem Tratados Internacionais sobre o Trabalho Infantil?

As principais definições internacionais sobre o tema são oriundas de duas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Dessa forma, as referidas Convenções possuem supremacia em face das Leis Federais e inferioridade ao texto constitucional.

A Convenção 138 da OIT dispõe sobre a idade mínima para a admissão ao emprego. Ficam definidos como critério de idade mínima os 15 anos, porém com ressalvas à economia doméstica, a qual, quando devidamente comprovada, é possível o ingresso com 14 anos. Para tanto, observa-se em seus artigos 3º e 4º:

3. A idade mínima fixada em cumprimento do disposto no parágrafo 1 do presente artigo, não deverá ser inferior à idade em que cessa a obrigação escolar, ou em todo caso, a quinze anos.           

4. Não obstante os dispositivos do parágrafo 3 deste artigo, o Membro cuja economia e sistemas educacionais não estejam suficientemente desenvolvidos poderá mediante prévia consulta às organizações de empregadores e de trabalhadores interessadas, se tais organizações existirem, especificar, inicialmente, uma idade mínima de quatorze anos. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1976).

A Convenção 182, de 17/06/1999, dispõe sobre as piores formas de trabalho infantil. Há expressamente uma determinação aos países signatários, em seu artigo primeiro, quando afirma que “Todo país-membro que ratificar a presente Convenção deverá adotar medidas imediatas e eficazes que garantam a proibição e a eliminação das piores formas de Trabalho Infantil em caráter de urgência” (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1999).

Doravante, registram-se na condição de piores formas de exploração, aquelas definidas pelo Art. 3º:

Para os fins desta Convenção, a expressão as piores formas de trabalho infantil compreende:

(a) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças, sujeição por dívida e servidão, trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou compulsório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; 

(b) utilização, procura e oferta de criança para fins de prostituição, de produção de material pornográfico ou espetáculos pornográficos; 

(c) utilização, procura e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e tráfico de drogas conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; 

(d) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 1999, grifo nosso).

Então, toda atividade que a criança ou adolescente faz é trabalho infantil?

Nem sempre, vejamos algumas importantes exceções, uma reflexão necessária para compreendermos a complexidade que envolve o conceito de trabalho infantil está a seguir:

No entanto, é preciso refinar essa definição, contemplando certos aspectos de tradições culturais em diferentes lugares do mundo. Em algumas sociedades, a transmissão cultural realiza-se oralmente, não havendo registros escritos de sua história, técnicas ou ritos. Assim, na agricultura tradicional ou na produção artesanal, crianças e adolescentes realizam trabalhos sob a supervisão dos pais como parte integrante do processo de socialização… O sentido do aprender a trabalhar varia de acordo com a cultura, com a sociedade e, dentro destas, varia também dependendo do momento histórico em que elas se encontram. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2001, p. 13).

Na sequência do raciocínio, na mesma obra temos: 

Mas a situação de trabalho como parte do processo de socialização não deve ser confundida com aquelas em que as crianças são obrigadas a trabalhar, regularmente ou durante jornadas contínuas, para ganhar seu sustento ou o de suas famílias, com consequentes prejuízos para seu desenvolvimento educacional e social. (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2001, p. 13-14).

As tarefas domésticas no seio familiar, como lavar vasilha do almoço ou arrumar o quarto, assim como uma visita aos locais de trabalhos (não insalubres) dos responsáveis legais, desde que não comprometam a sua educação e nem a saúde, e geralmente são consideradas experiências positivas, podem contribuir para a formação humanística da criança e o fortalecimento do vínculo com sua família. No plano internacional, tais condutas são descritas no caso como child work: seriam aquelas atividades socialmente permitidas para as crianças e adolescentes enquanto sujeitos em formação; geralmente há autorização legal, supervisão do responsável ou instituições; porém vale ressaltar que, em excesso ou caso haja risco à moralidade ou à saúde e à educação, estará esta criança ou adolescente frente ao child labor,  que é a exploração da força laboral infantil, amplamente prejudicial ao seu desenvolvimento.

Os tipos de trabalho infantil

O Manual de atuação do Ministério Público na prevenção e erradicação do trabalho infantil (BRASIL, 2013), propõe algumas subcategorias que funcionam como espécies de modalidades da violação de direitos. Para tanto, reproduzimos abaixo, de maneira sintetizada, as principais formas apresentadas:

  1. trabalho infantil no âmbito familiar:
  • abrange situações em que a criança ou o adolescente, com idade inferior a 16 anos, trabalha diretamente com os pais ou parentes, e em função ou a favor deles, seja na própria residência, seja em outro local (por exemplo, na agricultura e/ou pecuária; no artesanato; em casa de farinha comunitária; em oficina; como ambulante). Não há a figura do terceiro que explora ou se beneficia do trabalho. Os pais ou o responsável legal é que submetem a criança e o adolescente à execução da atividade laboral, ou permitem tal situação; 
  1. trabalho infantil doméstico:
  • nesta modalidade, a criança ou o adolescente trabalha para terceiros, em suas residências, em serviços de natureza tipicamente doméstica (na limpeza e arrumação da casa; na cozinha; como babá). De difícil observação e fiscalização, pois oculta-se na privacidade do lar, nos costumes domiciliares, inviolabilidade da residência pelo Estado. Nem sempre tal trabalho é remunerado, pois o serviço doméstico é visto como compensação ou retribuição, em troca da acolhida (teto; comida; entrega de produtos de higiene; permissão para estudar), com a prestação de serviços em prol da família, no âmbito da própria residência. A Convenção nº 182 da OIT, qualificou o trabalho doméstico como uma das piores forma de trabalho infantil;
  1. trabalho infantil em benefício de terceiro:
  • toda vez que a criança ou o adolescente realizar atividade laboral em que, direta ou indiretamente, beneficie economicamente terceiro, configura situação de exploração. São muitas as possibilidades de ocorrência destes casos: 
  • nas cerâmicas; nas pedreiras; 
  • na tecelagem; nas salinas; 
  • nas carvoarias; 
  • na agropecuária; 
  • na mineração; 
  • no artesanato; 
  • no comércio ambulante (venda de flores, de artigos de praia, de bebidas, de sorvete, de doces e salgados etc.). Pode ocorrer, inclusive, que a criança ou o adolescente labore em companhia dos pais, porém em favor de outrem, que é o beneficiário do trabalho de todos, podendo-se identificar, também, situação em que haja participação de intermediários na exploração do trabalho da família;
  1. trabalho infantil “por conta própria”:
  • a criança ou o adolescente exerce atividade laboral sem vinculação à família ou a terceiros. Nessa forma de trabalho infantil, está presente, muitas vezes, o abandono ou o afastamento do lar, em que o sustento passa a se dar por conta própria. Disso, são exemplos:
  • os denominados “flanelinhas”;
  • “pastoradores de carros”;
  • “limpadores de vidros” dos carros (nos sinais de trânsito);
  • “catadores de papel, latas e lixo”; 
  • “engraxates”. Condição social está extremamente frágil, há necessidade de institucionalização e/ou engajamento em programas sociais.
  1. trabalho infantil em atividades ilícitas:
  • nesta área, têm-se as situações de maior dano e prejudicialidade para a criança e o adolescente. São atividades em que são eles utilizados para a prática de ilícitos graves, como o tráfico de drogas, a pornografia e a exploração sexual comercial:
  • tráfico de drogas – utilização, demanda e oferta de criança ou adolescentes para atividades ilícitas, particularmente produção e tráfico de drogas, onde o aliciador se vale da condição da proteção jurídica da infância, como método de se eximir da responsabilidade penal;
  • pornografia – ligado à exploração da criança e adolescente, em especial sua imagem, através de pagamentos em dinheiro ou bens materiais, feito por terceiros, para produção de conteúdo pornográfico para consumo de terceiros;
  • exploração sexual comercial – utilização, recrutamento ou oferta de crianças para meios de exploração sexual com fins comerciais. A criança ou adolescente figura como mercadoria, objeto sexual, para obter dinheiro para si ou terceiro.
  1. trabalho infantil artístico:
  • ocorre principalmente em programas de televisão e na publicidade. É regra o incentivo e interesse dos pais ou responsável legal na realização do trabalho da criança e do adolescente, seja pela projeção social que representa, seja pelas possibilidades econômicas que propicia. Por isso não tem sido rara a participação ou omissão dos pais em situações de trabalho artístico que caracterizam abuso e desrespeito. Contudo, existe previsão legal para realização desse tipo de atividade, que se atendidas, afastam a ilicitude da ação;
  1. trabalho infantil desportivo:
  • Há um descompasso entre a legislação brasileira e os regulamentos da Federação Internacional de Futebol (FIFA). A lei federal 9.615/1998 (BRASIL, [2018]) conhecida por “Lei Pelé”, estabelece que o contrato formal entre o atleta em formação ao desporto de alto rendimento e à entidade de prática desportiva formadora, somente pode ser celebrado a partir dos 14 anos, na condição de bolsista aprendiz, conforme preconiza a Constituição Federal. Entretanto, a Federação Internacional de Futebol aceita em seus regulamentos a profissionalização de adolescentes a partir dos 12 anos, com contrato de trabalho ou equivalentes, no qual o atleta cede seus direitos desportivos ao clube ou a empresário que indiretamente tem ligação com o clube. Nesse caso, os empresários do esporte estariam optando pelos regulamentos da FIFA, mais próximos aos seus interesses, em detrimento da legislação brasileira;
  1. trabalho infantil religioso:
  • outra modalidade violadora de trabalho infantil é aquele desenvolvido em face de entidades religiosas. Recentemente a Justiça do Trabalho de Cuiabá, Mato Grosso, emitiu sentença condenando uma comunidade religiosa e uma livraria a ela associada a pagarem multas por utilizarem mão de obra de crianças, adolescentes e mesmo de adultos (em geral pais das crianças) sob a forma de trabalho voluntário (4º VARA DO TRABALHO DE CUIABÁ – MT/ PROCESSO N.º 0000731- 32.2014.5.23.0004);
  1. trabalho infantil em ambiente virtual: 
  • há também o debate sobre o trabalho infantil no ambiente virtual, envolvendo a rede mundial de computadores (internet), onde é crescente a mercantilização de certas expressões artísticas online, como os youtubers mirins e blogueiros (as). Nesse caso, a relação laboral entrelaça elementos artísticos, o âmbito do lar e facilidade de acesso à internet. Apesar ser uma nova modalidade, não são poucos os exemplos de jovens e crianças que são “sucesso na rede” e, muitas vezes, direta ou indiretamente, recebem algo em troca dessa exposição.

Interessante ressaltar que existem várias formas de exploração da mão de obra infantil e que mesmo aquelas aparentemente pouco agressivas, tais como o trabalho artístico, desportivo ou religioso, também colaboram para a violação sistemática dos direitos das crianças e adolescentes, configurando-se como uma prática extremamente nociva ao desenvolvimento integral de tais sujeitos. 

Entretanto, reitera-se que o trabalho infantil em atividades ilícitas é considerado aquele de maior dano e prejudicialidade, pois seus agentes ficam expostos às variadas formas de violência e extremamente suscetíveis às agressões físicas e, ainda, convivem com os riscos de serem punidos e responsabilizados pelos seus atos. 

Conheça a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil (Lista TIP)  

Outra classificação importante para a atual proposta de estudo é a Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil – Lista TIP –, que foi elabora com intuito de regulamentar a aplicação da Convenção 182 da OIT, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil. Dessa forma, através do decreto presidencial nº 6.481/2008, tratou-se de descrever 93 atividades laborais que seriam vedadas aos trabalhadores menores de 18 anos.

A lista TIP se organiza em dois capítulos, I. Trabalhos prejudiciais à saúde e à segurança e II.  Trabalhos prejudiciais à moralidade.  Cada tipo reprovável de trabalho infantil é composto por uma tríade de elementos, com breves definições: Descrição dos Trabalhos – Prováveis Riscos Ocupacionais – Prováveis Repercussões à Saúde.

Abaixo, pode-se observar uma exemplificação da lista:

Quadro 1 – Atividade: Comércio (reparação de veículos automotores objetos pessoais e domésticos)

ItemDescrição dos TrabalhosProváveis Riscos OcupacionaisProváveis Repercussões à Saúde
59.Em borracharias ou locais onde sejam feitos recapeamentos ou recauchutagens de pneusEsforços físicos intensos; exposição a produtos químicos, antioxidantes, plastificantes, entre outros, e ao calorAfecções musculoesqueléticas (bursites, tendinites, dorsalgias, sinovites, tenossinovites); queimaduras; câncer de bexiga e pulmão; asma ocupacional; bronquite; enfisema; intoxicação; dermatoses ocupacionais; internação e intoxicações

Fonte: Lista das Piores Formas de trabalho infantil (TI, 2008).

A Lista TIP é fundamental à compreensão da relação entre os males do trabalho e as prováveis consequências dessa atividade na saúde da criança ou do adolescente. É também através dessa tipificação legal que atua a fiscalização dos Auditores do Trabalho, do Ministério Público do Trabalho e autoridades policias.

Cabe ainda ressaltar que, embora as referências legais do trabalho infantil sejam de extrema importância, tanto na identificação do fenômeno quanto em seu enfretamento, sabemos que este está entrelaçado em uma rede cultural complexa que o sustenta. Nesse sentido, o capítulo, a seguir, explora alguns aspectos socioculturais que influenciam no modo como as pessoas percebem o fenômeno em nossa sociedade.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Conselho Nacional do Ministério Público. Manual de atuação do Ministério Público na prevenção e erradicação do trabalho infantil. Elaborado por Xisto Tiago Medeiros Neto e Rafael Dias Marques. Brasília, DF: CNMP, 2013. Disponível em:  http://www.cnmp.mp.br/portal/images/stories/Destaques/Publicacoes/Guia_do_trabalho_infantil_WEB.PDF. Acesso em: 4 out. 2019.

BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988: Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, […]. Brasília, DF: Planalto, [2019]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ Constituicao.htm. Acesso em: 19 set. 2019.

BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934). Nós, os representantes do povo brasileiro, pondo a nossa confiança em Deus, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para organizar um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico, decretamos e promulgamos a seguinte. Brasília, DF: Planalto, 1934. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil03/constituicao/Constituicao34.htm. Acesso em: 4 out. 2019.

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1967. Brasília, DF: Planalto, [1971]. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao67.htm. Acesso em: 6 OUT. 2019.

BRASIL. Decreto nº 17.943-a de 12 de outubro de 1927.

Consolida as leis de assistencia e protecção a menores. Brasília, Presidência da República, 1927. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/D17943A.htm. Acesso em: 10 out. 2019.

BRASIL. Emenda Constitucional n. 20, de 15 de dezembro de 1998. Modifica o sistema de previdência social, estabelece normas de transição e dá outras providências. Brasília, DF: Planalto, [2003]. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ emendas/emc/emc20.htm. Acesso em: 9 out. 2019.

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